Entrevista

Virgílio Coelho: “As ideias de Agostinho Neto sobre as línguas nacionais foram drasticamente apagadas”

Antigo vice-ministro da Cultura (2002 a 2008), instituição onde começou a trabalhar em 1975, Virgílio Coelho é dos mais destacados antropólogos angolanos. Leitor compulsivo de livros e jornais, dono de uma biblioteca com mais de 15 mil livros, o também professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto percebe como poucos os fenómenos culturais. Em conversa ao Jornal de Angola, fala, entre outras questões, sobre as suas investigações, o regresso das eleições nas universidades públicas e a forma como as ideias de Agostinho Neto sobre as línguas nacionais foram apagadas. “As ideias sobre as Línguas Nacionais constituem sem dúvida uma das suas marcas, que foram sendo apagadas por posicionamentos de algumas figuras implantadas na função pública e até mesmo no partido – MPLA e alienadas negativa e drasticamente pela Constituição de 2010”, diz o autor de uma rica obra sobre História e Antropologia Cultural .

Fotografia: DR

Foi editor do suplemento “Vida & Cultura” do Jornal de Angola, da área cultural no jornal Angolense e posteriormente no Semanário Angolense. Hoje, como académico, continua a ser um leitor regular dos jornais. Gosta do que anda a ler?

Sou um leitor compulsivo e pretendo ser um organizador, porque olho as coisas lá mais para a frente. Meu pensamento vai geralmente para aqueles que no próximo milénio procurarão entender o que fomos ontem e o que somos hoje. Que meios terão eles para avaliar-nos. Ou pensando de outro modo, que meios temos, ou tivemos, para avaliar os nossos antecessores há cem ou duzentos anos… Os jornais publicados aqui em Angola desde o surgimento da imprensa escrita, na segunda metade do século XIX, são um meio fabuloso para recuperar os factos e conhecimentos relativos aos nossos predecessores — designados a si próprios, por razões de conjuntura, “angolenses” ou “filhos do país” – em múltiplos domínios, desde, por um lado, a História, a Antropologia, ou a Literatura e, por outro lado, sobre línguas e questões de oralidade, saúde, agricultura, pecuária, administração, enfim, sobre as guerras que, afinal, não foram poucas; todo esse tipo de informação tendente a ajudar-nos a perceber o que fomos antes e ajudar-nos a avaliar o que são os angolanos hoje. Não falemos do futuro porque não nos habituamos a pensar nele, o que é mau, muito mau para os nossos netos, enfim, os nossos vindouros!… Neste momento debato-me com falta de espaço na minha biblioteca, pois, desde há um tempo a esta parte compro todos os jornais privados que saem, ou têm saído durante o fim-de-semana (agora são muito menos, por causa da pandemia mundial, a Covid-19 e do momento difícil que vivemos do ponto de vista económico e financeiro); mas do Jornal de Angola compro sempre dois exemplares, por exemplo. A qualidade material do jornal, refiro-me ao papel e a impressão do nosso único diário, tem sido, em termos de qualidade técnica, tão parca que às vezes me pergunto se estes chegarão, se se aguentarão até ao próximo milénio; enfim, é apenas uma preocupação!… Minhas leituras abarcam todas as matérias e nelas procuro encontrar factos e informações susceptíveis de dar respostas às solicitações que me são feitas em relação ao meu trabalho como antropólogo.

Voltando à questão…

Voltando à pergunta, deixa-me dizer-lhe que foi um período que me deu imenso prazer por contribuir para a informação e a formação de todos quantos liam alguns desses órgãos, infelizmente hoje desaparecidos. Em relação ao “Vida & Cultura”, aproveito o momento para lembrar o excelente trabalho que foi desenvolvido pelo falecido Ocirema (Américo Gonçalves) e aí devo dizer-lhe que contribuí apenas como mais um colaborador externo, por solicitação do David Mestre, então director do Jornal de Angola. Posteriormente, dei a minha colaboração engajada ao editor Adriano Mixinge que, diga-se de passagem, tal como o seu predecessor, deixou o seu traço, a sua marca, nas páginas desse importante suplemento. Quando o Mixinge partiu, creio que para França onde foi Adido Cultural, ele pretendia que eu o substituísse, mas eu preferi que esse lugar fosse para um jornalista mais novo e foi assim que dei a minha colaboração ao Jomo Fortunato, que o substituiu, mas isso por pouco tempo, porque logo a seguir fui convidado para dar vida, enquanto editor, à área cultural do jornal Angolense e depois à do Semanário Angolense. Devo dizer que em ambos os órgãos há inúmeras peças cujas matérias, tarde ou cedo, vou ter que as reunir em livro, já que elas são de grande importância e utilidade para perceber o desenvolvimento nas áreas da cultura, literatura e artes durante esse período.

O seu nome está ligado a várias publicações académicas. O que está na base do desaparecimento destas revistas científicas?

A sua pergunta deixa a entender claramente que os órgãos de informação científica apontados estão adstritos a instituições. A revista “Mulemba” à Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade Agostinho Neto (UAN) e a “Ngola” à Associação de Sociólogos e Antropólogos de Angola (AASA). Portanto, cabe em primeiro lugar às instituições citadas responderem sobre as razões desses órgãos não continuarem permanentemente no mercado, onde, entenda-se, leitores não faltam, porque na sua maioria são pesquisadores, professores e estudantes do ensino superior e também do médio, gente próxima das humanidades. Por outro lado, as dificuldades verificadas para a edição de revistas são as mesmas ou maiores ainda do que aquelas que geralmente ocorrem na produção de livros, sejam eles científicos, de ficção ou até de poesia. Não direi certamente nada de anormal se ligar a isso a falta de verbas consignadas especificamente para a edição tanto de livros como de revistas. Em relação à Mulemba, de 2011 a 2016 foram editados 12 números, na ordem de dois números por ano (nunca se vira antes tamanha regularidade e nível de participação) e neste momento estão prontos para a impressão três números referentes aos anos de 2017, 2018 e 2019. São mais de 1.500 páginas resultantes, por um lado, da realização dos três últimos colóquios organizados na FCS-UAN e, por outro, de colaborações muito específicas, engajadas, ligadas à organização das várias secções. Esses números não estão concluídos até esta data por falta de verbas. Mas em qualquer um desses números encontramos colaborações muito importantes de pesquisadores e professores angolanos e estrangeiros, o que torna o assunto inquietante uma vez que a revista já granjeou um lugar de prestígio tanto no país como no estrangeiro. Só para completar a sua pergunta e embora não se tenha referido, gostaria de lembrar que enquanto editor, organizei e editei igualmente a Maka – Revista de Literatura e Artes, órgão da União dos Escritores Angolanos (UEA), de que saíram por enquanto dois números. E aqui também o problema financeiro constitui a causa da sua paralisação, ainda que, tal como as outras publicações, temporária, penso…

A Edições Mulemba, numa iniciativa só igualável àquela que o INALD – Instituto Nacional do Livro e do Disco fez com escritores africanos e sul-americanos, mandou traduzir e publicar dezenas de obras de académicos africanos. É uma iniciativa que deve continuar ou já ficou pelo caminho?

É bom que em relação ao que me pergunta comecemos por esclarecer que a Edições Mulemba é uma editora que foi criada pela FCS-UAN especificamente para resolver as suas necessidades editoriais e segundo a política que foi delineada pelo seu Conselho Científico-Pedagógico, então dirigido pelo seu Decano, o Prof. Dr. Víctor Kajibanga; desde o ano de 2011, começou-se por criar colecções, que passaram a ser dirigidas por distintos professores da instituição. Foi numa dessas colecções, denominada “Reler África”, que se viria a traduzir e publicar os autores africanos mais destacados na actualidade em distintas disciplinas do conhecimento científico, tais como a Sociologia, a Filosofia e a Epistemologia, a Ciência Política, a Antropologia ou mesmo a Economia. Muitas das obras publicadas já estão hoje esgotadas e outras continuam a ser procuradas por professores e alunos no nosso país e até mesmo no Brasil e em Portugal. Inúmeros doutorandos oriundos desses dois países, que têm acorrido ao nosso país para efectuar pesquisas directas sobre o terreno ou para consultar os nossos arquivos sobre questões de escravatura, têm procurado avidamente os nossos livros. Por isso, a continuidade editorial do programa iniciado está dependente aqui também de uma solução financeira, uma tarefa que a actual Decana da FCS-UAN, Prof. Dra. Luzia Milagre, empenhadamente tem procurado resolver…

De Ambundu para Akwakimbundu

Tanto na sua dissertação de licenciatura (1987), quanto na de mestrado (1988), e em um ou outro texto escrito e publicado ainda nessa fase, usa o designativo “Ambundu” para se referir ao grupo étnico-linguístico dos falantes da língua kimbundu, mas depois opta pela terminologia “Akwakimbundu”. A que se deve essa mudança?

É verdade… Qualquer um desses dois trabalhos académicos e alguns artigos produzidos nessa época, resultaram geralmente de opções de momento e estiveram por isso geralmente sujeitos a questões de tempo. Como sabe, quando se trabalha em períodos de tempo fechados, que nos impõem um programa de trabalho e uma calendarização, com a intenção de os defender, não há muito tempo para reflectir entre os dados e informações recebidos e a busca de soluções adequadas em função das nossas opções e conhecimentos no momento. Uma coisa que aprendi com um dos meus mestres, foi que não tendo respostas convincentes para este ou aquele assunto, deve-se interrogar e procurar delegar o assunto para uma outra fase, em que se espera ter tempo e possibilidade de meditar e encontrar respostas que julgamos mais convincentes e adequadas sobre o assunto. É o que hoje vai acabando por ocorrer, porque sendo os dados que se possui hoje mais precisos e mais esclarecedores, deixei de ter em conta a terminologia “Ambundu”, senão como um referencial histórico indevido, recebido desde o século XV, cujo significado não cabe no pensamento das populações que integram a comunidade que fala a língua kimbundu, uma vez que, na noção de povo e de pertença social a uma determinada comunidade, ninguém escolhe uma palavra com significado entendido como pejorativo, para não dizer, atormentador, para se autonomear. Este termo, tanto quanto outros, utilizados indevidamente durante a época colonial e mesmo até após a nossa Independência, têm que ser estudados e aclarados. Em função dos novos dados, deixei de utilizar o termo “Ambundu” e passei a utilizar um novo referencial, sociológico e linguístico: Akwakimbundu. Eu espero abordar com substância, essa e outras questões na minha próxima obra que tenho em preparação…

Defendeu, num dos seus trabalhos, que os chamados “reinos” do Ndongo e da Matamba fazem afinal parte de uma mesma realidade política. Matamba acabaria por acolher o “Estado Ndongo”, por isso o designa por “reino ndongo de Matamba”. Gostaria que nos aclarasse sobre a sua proposta que, segundo nos parece, não é do mesmo entendimento dos demais historiadores…
É este, com efeito, um problema complexo. E isso porquê?… Porque nas nossas actuações e posicionamentos temos sido marcados por dados e informações recebidos há quatro ou cinco séculos, materiais e informações que foram, muitas vezes, incorrectamente recebidos e descritos por quem os captou, grafou e utilizou pela primeira vez… Refiro-me, sobretudo, a documentos portugueses e italianos. Dizer que o meu posicionamento não é do entendimento dos demais historiadores, não é mau, não é negativo, antes pelo contrário, acredito que é de múltiplos posicionamentos, alguns dos quais díspares, contraditórios, que vem a luz… Eu vejo que tais historiadores, a que se refere, receberam a informação acerca de um pretenso “Reino da Matamba”, como algo definitivo e eu acho que não têm reflectido seriamente sobre o assunto… Não pode ser, em História tanto quanto em qualquer outra disciplina do conhecimento científico, nada é definitivo, felizmente!… Aqui, para esta questão, nós partimos de dois pressupostos fundamentais: primeiro, os Kilwanji são originários da Samba, algures na Matamba: daí o nome/título Ngola a Kilwanji kya Samba. Os Kilwanji kya Samba constituíram uma das dinastias mais importantes do Reino do Ndongo e, curiosamente, é aquela que ainda hoje é a mais conhecida, é aquela que é a mais lembrada pelas populações e comunidades de fala e cultura Kimbundu. A soberana Njinga a Mbande, não obstante o seu nome, é, como se sabe, originária da dinastia dos Kilwanji kya Samba, mas graças às lutas heróicas que travou contra os portugueses, ficou também extraordinariamente conhecida, tanto ou mais que os integrantes das outras dinastias.

E segundo…

Segundo, o termo Ndongo é polissémico, como o são, aliás, a maioria das palavras bantu. Assim, esse designativo, além de designar o “país”, designa também o “sacerdote principal”, o “nome da cidade real” (Mbanza a Ndongo); mas significa também uma “ideologia” (ndôngò), tal como eu mostrei no meu livro sobre a história dessa estrutura política. É essa ideologia que a soberana mwene a ngola Njinga a Mbande leva consigo quando se assenhora do território e se instala na terra dos seus antepassados, a Matamba, na fase da luta que dirigiu durante décadas contra os portugueses. Segundo entendo, a Matamba foi desde sempre parte integrante do Reino do Ndongo, uma conexão, um começo, uma continuidade… Daí a expressão: reino ndôngò de Matamba. Como ela se liga aos Imbangala, também conhecidos por “Jagas” (por difusão portuguesa), ela absorve, igualmente, a ideologia do “kilombo”. É com base nestes dois pressupostos ideológicos, que esta consegue travar, enquanto pode, o avanço dos portugueses. Trata-se, pois, de aclarar o que de errado tem sido até aqui proposto…

A dinastia dos Kilwanji kya Samba que, segundo escreveu, reinaram dois ou três séculos (possivelmente desde o século XIII) antes da chegada ao país dos conquistadores portugueses, foi muito marcante para a organização e a estruturação política do “reino” do Ndongo. Há discursos na tradição oral/escrita segundo os quais a corruptela “Angola”, resultante da terminologia Ngola, durante a dinastia dos Ngola a Kilwanji, não surgiu por mero acidente. Notou essa alegada pretensão de unidade nessa dinastia?

Em primeiro lugar relaciono a cronologia dos Kilwanji kya Samba com o que escreveu o historiador norte-americano Joseph Calder Miller que, ainda durante a época colonial, fez uma importante pesquisa na província de Malanje. Aproveito esta ocasião para lembrar a memória deste insigne professor, pesquisador e amigo, falecido recentemente. Foi, de facto, uma grande perda para Angola e para o mundo. A dinastia dos Ngola a Kilwanji é certamente posterior à dinastia dos Kilwanji kya Samba. Foram os Ngola a Kilwanji que mantiveram os primeiros contactos com os navegadores portugueses que aqui chegaram. O que é que estes encontraram? Uma estrutura política de dimensões vastas, bem organizada e estruturada do ponto de vista político, económico, social e cultural. As primeiras fontes jesuítas são claras a este propósito. E, no entanto, apesar da história dos soberanos dessa dinastia estar bem instalada nas fontes escritas portuguesas, não são estes que ficaram mais conhecidos nas gerações seguintes, nem muito menos nos ecos das tradições orais, orais/escritas e escritas.

Porquê?

Esse facto me incomoda e me tem mantido constantemente inquieto, pois eu próprio gostaria de tentar perceber como é que uma dinastia que é anterior em muitos séculos permanece hoje mais conhecida em termos históricos do que aquela que permaneceu no poder posteriormente. Serão esses três séculos em que a dinastia dos Kilwanji kya Samba se manteve no poder que marcam em definitivo essa imagem, essa lembrança, a permanência dessa memória ou, enfim, é porque isso se deve à saga da conquista e demarcação do país Ndongo por Ngola a Kilwanji kya Samba?… Esse nome é bastante esclarecedor: “Soberano conquistador do país dos Samba”… Tenho para mim que é exactamente isso que acaba por marcar completamente as nossas memórias!… Os Ngola a Kilwanji bem que tentaram manter o reino incólume, intacto, mas as fontes mostram claramente que as armas dos conquistadores lusos (bem munidos de mosquete, espada, lança e canhão) eram tecnicamente superiores em relação aos meios de defesa dos Tumundongo.

E em relação ao termo Ngola, de que resulta o nome do nosso país Angola?

Já em relação ao termo Ngola, nós temos que pensar de outro modo e não da forma como temos ouvido aqui ou ali. Para os Kimbundu, a palavra “ngola” é também um termo de múltipla significação: começa por designar uma matéria em ferro e, simbolicamente, um signo do poder, e, por isso mesmo, um título político. Ajuntado ao nome/título, temos, por exemplo, “Ngola a Kilwanji”, um título político perpétuo… Em seguida, podemos pensar, por exemplo, na soberana Njinga a Mbande: ela é, em primeiro lugar, e tal como já referi antes, uma Kilwanji, mas pertence aos “Mbande”, uma outra dinastia, a dos “destemidos”: a designação para ela é Mwene a Ngola Njinga a Mbande. Por falar nos “Mbande”, deixa-me aproveitar esta ocasião soberana para corrigir todos aqueles que em vez de Mbande escrevem Mbandi; segundo me alertou uma vez o kota Job Baltazar Diogo, Mbandi é uma corruptela kimbundu de “bandido”, “bandida” e a nossa Njinga não foi nenhuma bandida, esclareceu. Foi graças a esse ensinamento que um dia, quando fui delegado provincial da Cultura de Luanda, solicitei ao meu colega delegado provincial da Educação de Luanda, que corrigisse a escrita do seu nome na instituição que a homenageia, situada algures no Makulusu, próximo ao antigo 1º de Maio. E a correcção foi imediatamente feita. Fechemos este breve parêntesis e continuemos. Em vez de pensar unicamente em quem são e de onde vêm, o que é mais complicado é tentar perceber o que vem antes de ter surgido o próprio “Reino” ou Estado Ndongo… Na História mais antiga dos Kimbundu, há um capítulo que é contado através de narrativas orais, narrativas antigas, mitológicas, portanto, anteriores à História. Aí, deparamo-nos com a história sobre as origens do mundo, uma narrativa sobre o mundo primordial, um mundo criado por Nzambi a Mphungu (Deus todo poderoso)…

O que diz a narrativa?

Observa-se, nessa narrativa, que Deus vivia ainda com os homens em sã harmonia e onde não havia nem se falava ainda da morte. Aí, nesse mundo primordial, harmonioso, encontramos um personagem que se chama muito justamente Ngola. Assim, podemos observar que Ngola é, antes de mais nada, um nome (tal como encontramos ainda hoje muitas pessoas que se chamam Ngola, bastando para tal consultar o Jornal de Angola, na secção de Necrologia, ou, algumas vezes, em reportagens sobre os nomes autóctones). Na narrativa mitológica de que vimos falando, esse personagem Ngola desempenha aí um papel muito importante, e que, sem sombra de dúvidas, ajuda a compreender alguns factos históricos posteriores, tais como, por exemplo, sobre as origens do “reino” do Ndongo, que nos são relatados por dois padres italianos, Cavazzi de Montecúccolo ou Francesco Maria Gioia, no século XVII: foi um ferreiro que fundou o Reino do Ndongo e esse ferreiro, tal como na história das origens do mundo, se chamava justamente Ngola. Qual era então a função de Ngola nessa narrativa mitológica?

Há que apoiar o Instituto de Línguas Nacionais

A sua dissertação de mestrado trata do lugar e do papel do Kilamba na sociedade kimbundu. Na sequência desse trabalho, produziu um artigo sobre o nome composto Kilamba Kyaxi, nome de um novo município que foi criado após a morte do Presidente António Agostinho Neto, com vista a homenageá-lo. Pode situar a partir de quando é que Agostinho Neto assume esse antropónimo e quais terão sido as suas motivações?…

É verdade… Tal como disse, para a minha dissertação de mestrado, trabalhei sobre o lugar e papel do Kilamba – um importante título político-religioso na sociedade de tradição, para empregar um termo consolidado na Antropologia e na Sociologia por Georges Balandier, estudioso francês de boa memória. Essa dissertação, de 175 páginas dactilografadas, ainda não está publicada. Foi escrita em francês e eu ainda não tive possibilidade de a traduzir. No ano seguinte, após a defesa da dissertação, creio que em 1989, participei na cidade do Porto (Portugal) numa importante conferência sobre Agostinho Neto e aí apresentei um trabalho que discutia muito justamente o significado de Kilamba em Agostinho Neto e o seu significado simbólico, marcado pela atribuição do designativo composto atribuído a um novo município (Município do Kilamba Kyaxi). As actas dessa reunião começaram por ser publicadas pela Fundação António de Almeida no Porto. No entanto, como dessa obra chegaram apenas a Angola uns poucos exemplares, que logo se esgotaram, o escritor António Cardoso, que nessa altura dirigia o então Departamento Nacional de Arte, Literatura e Espectáculos (DNALE) da Secretaria de Estado da Cultura, encarregou-se de o publicar em Angola. Curiosamente, essa obra viu a luz do dia sob a chancela do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).

Voltando à questão…

Agostinho Neto usou desde sempre o antropónimo Kilamba durante a luta política que dirigiu contra o colonialismo opressor; conhecedor profundo da sua cultura de origem, eu suponho (digo suponho porque nunca o entrevistei a esse respeito) que ele tinha para si que o uso político desse título, cuja terminologia se enquadrava na organização do sistema político na comunidade étnica akwakimbundu, representava a autoridade política mais poderosa do sistema, mais poderosa que a do próprio mbanza e do soba (dois títulos do sistema político na sociedade de tradição), uma vez que estes últimos não poderiam exercer funções sem que fossem preparados magicamente por um kilamba. Enfim, é conveniente esclarecer que no seio do MPLA, todos os militantes e combatentes durante a Luta Armada de Libertação Nacional, eram chamados a utilizar um nome de guerra, o que, obviamente, explica tudo.

Nas suas obras grafa os tons da língua Kimbundu, procurando estar de acordo com a norma estatuída pelo Instituto de Línguas Nacionais (ILN). Como vê hoje esse “autêntico caos”, como lhe chamou, na utilização e transcrição das nossas línguas?

É verdade, a ideia era mostrar a importância do trabalho que o Instituto de Línguas Nacionais (ILN) estava a fazer e que foi desde sempre alienado e desarticulado por muitos…, aliás, sempre bem escondidos!… O ILN é a instituição que se seguiu ao Instituto Nacional de Línguas (INL), uma instituição que continua ainda hoje a desempenhar debilmente as suas funções, por falta de apoios evidentes!… Só para perceber: o INL nasceu graças a Agostinho Neto e essa poderia ser uma das suas maiores marcas de governação durante o seu tão diminuto mandato (Novembro de 1975 – Setembro de 1979). A sua morte constitui uma crueldade da natureza difícil de apagar, difícil de compreender!… Podemos entender a morte, porque todos nós vamos morrer, ninguém ficará por cá eternamente, a não ser de outro modo, quando se é relembrada a memória de alguém que em vida nos deixou traços marcantes. Difícil de entender foi a maneira tão trágica e, por vezes, tão abusiva, como muitas das suas orientações, muito do seu legado foi paulatinamente esquecido, apagado. E as ideias sobre as Línguas Nacionais constituem sem dúvida uma das suas marcas, que foram sendo apagadas por posicionamentos de algumas figuras implantadas na função pública e até mesmo no partido-MPLA e alienadas negativa e drasticamente pela Constituição de 2010. Historicamente teremos que recuperar a nossa memória e voltar a ler com os olhos de ver o que foi publicamente proposto pelo documento orientador da 3ª Reunião Plenária do Comité Central do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que teve lugar no auditório do Museu Nacional de História Natural, em Luanda, de 23 a 29 de Outubro de 1976.

Quais são as orientações desse documento?

Fala-se aí, nesse documento lapidar, da necessidade de lutar pela liquidação do analfabetismo e resgatar e popularizar as manifestações positivas da nossa cultura e dos vários grupos étnicos que compõem o nosso povo; preservar e desenvolver estudos das línguas nacionais com a inclusão do português como idioma veicular. E para dar corpo ao projecto de liquidar o analfabetismo, foi criada uma Comissão de Educação, Cultura e Desportos no Comité Central do MPLA e foi determinada a dinamização do Departamento de Educação e Cultura (DEC), com o objectivo de orientar permanentemente o Ministério da Educação e o Conselho Nacional de Cultura. Com a criação do INL e a necessidade de conhecer a organização das Línguas Nacionais de Angola, estavam criadas as condições para o seu estudo sistemático e a sua consequente materialização nas tarefas da alfabetização e em geral no ensino. O que é que se vê hoje?…

Sim, perguntaria o mesmo…

Não só essa orientação específica, concreta, acabaria por ser esquecida, como hoje a alfabetização é feita unicamente na língua portuguesa, constituindo isso um autêntico contrassenso, porque dificulta a rápida compreensão e o avanço das pessoas alfabetizadas, que falam geralmente as suas línguas maternas, que são estruturalmente diferentes da língua portuguesa, ocorrências que não preconizam avanços coerentes pelos confrontos evidentes entre umas e outras línguas, contrariando assim as principais orientações acerca do que Agostinho Neto preconizara… A saída que preconizamos hoje só pode ser uma: voltar ao projectado anteriormente, porque foi correctamente pensado e orientado de acordo com as nossas idiossincrasias. Prover financeiramente o ILN, criando condições para que todas as Línguas Nacionais sejam estudadas; falamos não apenas das línguas que são de origem Bantu e que ainda não foram abordadas (Herero, Lunda ou Uruwundu, Ciluba, Luvale, as línguas do grupo Okavango), mas também, por exemplo, a língua da comunidade San (ditos Khoi-san) e a língua dos Kwisi/Ova-kwandu e dos Kwepe (Kwai/tsi), comunidades que terão sido geralmente enquadradas na terminologia colonial por Vatwa. Proceder à publicação contínua dos trabalhos de investigação das línguas já estudadas, assim como os trabalhos de suporte sobre os Textos Orais (matérias resultantes de amplas recolhas das Tradições Orais, de todas as comunidades étnicas do país) de que os cidadãos recém-alfabetizados têm necessidade para manterem em dia a formação recebida.

“Nossos nomes foram completamente deturpados”

Contrariamente à forma como os nomes nas línguas nacionais têm sido transcritos, sempre defendeu a transcrição “Malanje” em detrimento de “Malange”. E mesmo depois de o Ministério da Administração do Território (MAT) ter optado pela primeira, há instituições públicas que ainda optam pela segunda. É um consenso difícil?

Em relação a isso só temos que relembrar o que já concluí anteriormente. Em seguida, relembrar também que os poderes públicos, nomeadamente os seus dirigentes, têm que definitivamente deixar de interferir em coisas de que não percebem, porque, não sendo especialistas, quando o fazem, fazem-no mal. No nosso país, é comum entender-se que quando se faz uma crítica sobre um determinado assunto, que a mesma é sobretudo dirigida a pessoa x ou y. Não é esse o meu ponto de vista que, contrariamente, entendo que é necessário agir e pronunciarmo-nos sobre aquilo que, na nossa maneira de ver ou analisar está errado… Denotamos erros quando vemos que alguém agiu mal contrariando o senso comum, a norma geral. É por isso que, assim o entendo, praticamente ninguém esteve de acordo com a intervenção do então ministro da Administração do Território sobre questões que já estavam asseguradas sobre as formas de escrita das línguas nacionais.

Ninguém?

Repito, eram orientações do próprio Partido-MPLA, que foram na ocasião correctamente equacionadas!… Quando o fez, sem qualquer brio… (até mesmo Agostinho Neto na sua tumba experimentou desagrado; e o que dizer do kota Job Baltazar Diogo, um experimentado tradutor da Bíblia e conhecedor exímio do Kimbundu, quando, ali onde descansa, ouviu o que ouviu?!…). Curiosamente, não vi o ministro mudar o nome de Mbanza Kongo ou a forma grafada do nosso dinheiro, o Kwanza (lá mesmo, na nota ou na moeda. Então não é lá onde deveria corrigir?). E o nome das nossas províncias: grafar “Malange”, ou lá o que é isso?… (Malangue, diremos todos!…, em vez de Malanje, ou melhor, Malanji, que começa por ser o nome do rio). Os nossos nomes têm que voltar a ser correctamente escritos, explicados quando necessário e divulgados, pois, em qualquer língua, o nome que é atribuído tem um significado concreto, tem muitas vezes um significado especial, designa alguma coisa concreta, revela a nossa idiossincrasia; deveríamos lutar incessantemente para que o nome das pessoas, dos lugares, dos rios e montanhas, do céu e da terra, sejam correctamente escritos. Os nossos nomes foram completamente deturpados pelos portugueses e hoje nós não fazemos nada para requalificá-los… Se nem mesmo os nomes dos nossos heróis têm sido valorizados… Mas afinal não foi para isso que lutamos contra o colonialismo opressor, não lutamos para a construção de um mundo melhor do que aquele que vivíamos na época colonial? A poesia de Agostinho Neto já não dizia ou revelava isso?… E as resoluções da 3ª Reunião Plenária do Comité Central do MPLA, que citamos amplamente, não orientavam já isso?…
Como se sabe, além de outros eventos importantes, nomeadamente os encontros da comissão sobre a História da Literatura Angolana, até esta data já foram realizados três encontros internacionais sobre História de Angola. Durante o segundo encontro foi criada uma Comissão Internacional que ficou encarregada de dinamizar a pesquisa e a divulgação da nossa história.

Em que pé está esse assunto e o que falta para finalmente termos uma História Geral de Angola?

A partir de fins de 2008 todos nós observamos a manutenção de uma nova equipa na direcção do Ministério da Cultura, que era aí onde estas questões estavam a ser equacionadas e tratadas. A comissão encarregue da História da Literatura Angolana (HLA) foi praticamente desarticulada e abandonada, o que foi realmente uma pena; as questões e os problemas relacionados com a História Geral de Angola (HGA) terão sido retomados de outra forma, mas retomados e ainda bem. É verdade que no II Encontro Internacional sobre História de Angola, foi ressaltada a necessidade de se criar uma Comissão Internacional Especializada tendente a discutir as formas e os meios necessários para desenvolver um projecto articulado para a escrita da nossa História. É que, tudo tem uma história: durante a década de 1990, se assistiu a uma movimentação inusitada de estudiosos angolanos preocupados com a História e a Cultura de Angola. Tratava-se, sobretudo, de pesquisadores que foram participando em eventos internacionais onde eram discutidas questões diversificadas, por um lado, da História de África, e por outro da História de Angola. Esses pesquisadores, conjuntamente com seus colegas (portugueses, brasileiros, norte-americanos, ingleses, entre tantos outros), que estavam também a trabalhar sobre a nossa história, participaram em vários eventos realizados seja em Lisboa, Luanda, Rio de Janeiro ou São Paulo, onde os seus trabalhos e materiais de pesquisa eram escrutinados e discutidos conjuntamente com esses colegas oriundos dos quatro cantos do globo.

E aí se viu a necessidade de trabalhar numa história geral?

Foi num desses encontros que acabamos por nos encontrar em Luanda durante a II Reunião Internacional de História de Angola e foi aí que se entendeu necessário começar a trabalhar conjuntamente para a redacção de uma História Geral de Angola (HGA). Havia, diga-se de passagem, a experiência luso-caboverdiana da redacção de uma História Geral de Cabo Verde, uma experiência julgada inovadora. Os produtores dessa experiência interessante eram nossos colegas, alguns dos quais também participavam dessas reuniões. Na sequência disso, ainda assistimos à realização de uma III Reunião Internacional de História de Angola, que não foi conclusiva quanto à eventualidade da tal Comissão Internacional. Ademais, talvez não seja necessário dizer que há no mundo inúmeros estudiosos e especialistas, professores e pesquisadores que, juntos, reunidos por uma instituição credível, uma coordenação respeitável, seria capaz de desenvolver em tempo razoável o projecto de redacção de uma HGA. Do mesmo modo, é também necessário lembrar que no passado fora sempre o Ministério da Cultura que chamara para si essa responsabilidade da HGA, quanto mais não seja porque uma das suas estruturas, o Arquivo Histórico, tem chamado para si essa função e responsabilidade. Mas, pensamos, é necessário que doravante sejam chamadas a contribuir também as instituições de ensino superior e centros de investigação científica vocacionados para essa tarefa específica, o ensino da História de Angola… Em conclusão, a tal Comissão Internacional, que fora aventada durante a II Reunião Internacional de História de Angola, foi completamente esquecida…

Entre Dezembro de 2002 e Setembro de 2008 desempenhou as funções de vice-ministro da Cultura. Alguma vez sentiu que deixou algo por fazer ou que poderia ter dado uma contribuição diferente?

Aqui está uma pergunta ao mesmo tempo complicada e difícil de responder. E isso porquê? Acho que é uma questão para ser colocada ao antigo ministro da Cultura, pois, tanto eu quanto o meu colega, o saudoso arquitecto André Mingas, éramos coadjuctores do ministro e lá estávamos justamente para ajudar a tornar governável o Ministério. Como deve entender, a área da cultura é complexa, vasta e especializada e cada vice-ministro respondia por áreas específicas, cujas linhas programáticas e de actuação possibilitavam que o ministro agisse o melhor possível e em sã consciência. Coube-me a vasta área do património, que incluía as instituições como o Arquivo Histórico, o Instituto Nacional do Património Cultural (INPC) e suas dependentes e tentamos aprofundar a investigação científica nessas instituições. Pode-se dizer que, em termos de desenvolvimento do sector, em finais de 2008 o Ministério da Cultura respirava ar puro e atravessava um dos seus melhores momentos, dos mais significativos em termos de melhorias estruturais. Demos o nosso melhor e poderíamos ter feito mais. Mas não quer dizer que não tivéssemos passado por problemas que afligiam sobremaneira o nosso quotidiano. Uma das coisas que poderei dizer é que, por exemplo, a legislação aprovada pelo Governo angolano sobre o Património Cultural é uma das mais avançadas do ponto de vista africano. Mas o que pude observar é que uma coisa era a legislação e outra a sua aplicação e o seu cumprimento.

Porquê?

Observei a facilidade como determinados cidadãos passavam por cima da mesma para atingir os seus objectivos; observei isso sobretudo na cidade de Luanda, onde, em determinados lugares em que se achava património antigo da cidade, ser destruído em fins-de-semana prolongados, e isso com a desfaçatez de quem o fez alegar que desconhecia que o edifício em questão, entretanto destruído, era património classificado. Algumas construções efectuadas recentemente na cidade nunca seriam efectuadas em nenhum lugar do mundo, até porque tendo uma legislação clara como a água, só se constrói porque se tem poder e contra o poder, tal como então se pensava, ninguém podia fazer nada!… Razão porque, penso, só se pode fazer algo diferente quando há sintonia absoluta e coerência no sistema de mando e na razão do Estado. E quando as questões do Estado são tratadas como se da “filha da mãe Joana” se tratasse, nada se pode fazer, senão desligarmo-nos pura e simplesmente… Uma outra questão: há dois pontos que sem sombra de dúvidas poderiam constituir um grande contributo para o desenvolvimento do conhecimento da nossa História e Cultura, a saber: a mudança do Governo em 2008, levou a que os projectos sobre a História da Literatura Angolana (HLA) e a História Geral de Angola (HGA) acabassem por cair no esquecimento, ou cair em outras mãos e ser apenas retomado em parte (o segundo); a realização da III Reunião Internacional, mostrou a continuidade de materialização do projecto, mas as tarefas concernentes à projectada Comissão Internacional não. Convém realçar que estes projectos incluíam programações concretas, com verbas para viagens, para recolhas de informação, para custeamento de despesas com pessoal, publicação dos materiais, etc., etc.

O que é que se pretendia então com isso?

Pretendia-se, com ambos os projectos, que o seu desenvolvimento fosse efectuado com o concurso de pesquisadores nacionais e estrangeiros. Tratavam-se de pesquisadores que a nível do mundo têm trabalhado em áreas e matérias de especialidade sobre Angola, região por região e cronologicamente. Não ter concretizado ou encontrado os caminhos apropriados para se chegar idealmente ao projectado levou a que tivéssemos sido alvo de chacota lá fora, sobretudo quando um historiador luso-angolano publicou uma História de Angola em 2015. É evidente que esforços individuais poderão e deverão ser feitos proximamente, mas acreditamos piamente que bem merecíamos uma História de Angola com carácter enciclopédico em muitos volumes… Há por fim algo que tem que ficar dito: qualquer servidor do Estado tem que estar consciente de que no exercício de qualquer função, no Governo como fora dele, está ali de passagem. Há, por isso mesmo, que agir em sã consciência e estar ciente de melhor servir…, coerentemente.

 

“Vejo com apreensão o possível regresso das eleições nas universidades públicas”

Como vê o possível regresso das eleições nas universidades públicas?

Vejo isso com muita apreensão… Para precisar o meu raciocínio talvez seja melhor historiar. Como sabe, no passado, durante a nossa primeira fase pós-independente, a fase de Democracia Popular com Agostinho Neto, a forma de encontrar os dirigentes para gerir a única instituição de ensino superior no país foi efectuada através de indicação e nomeação. Depois, numa segunda fase, passou-se para o exercício de “eleições livres”. Não possuo informação, nem há qualquer documento que me assegure que esta fase tenha sido melhor que a anterior; antes pelo contrário, observador que fui das eleições na Universidade Agostinho Neto (UAN), tenho para mim que a gestão dessa fase não correspondeu ao que se esperava dela. Entretanto, em determinado momento, por qualquer razão que por ora me escapa, essa forma de agir foi suprimida e voltou-se à primeira fase: prover os quadros a partir da nomeação directa. Finalmente, hoje fala-se novamente em eleições…

E como vê isso?

Dir-se-ia que andamos constantemente a tactear na busca de um ordenamento correcto para as nossas acções… mas sem se perceber qual é o fio condutor dos seus promotores. Vejamos dois exemplos: em instituições de ensino superior e de investigação científica em países como os Estados Unidos da América ou a França, a direcção dessas instituições é feita geralmente por indicação, seguido de nomeação; em instituições privadas, mesmo aqui em Angola, os seus proprietários não correm jamais o risco de submetê-las a quem quer que seja; são eles próprios que escolhem e nomeiam os quadros de direcção. E isso nos parece muito simples de perceber, pois, naquelas como nestas, não se corre o risco de submeter as suas instituições ao sabor de intrigas domésticas, de incremento do populismo, de divisão ou segmentação política, ou até mesmo, muitas vezes, o risco de submetê-las ao espírito do “deixa andar” e da incompetência. Pois, afinal, em instituições como estas o que conta sobretudo não é necessariamente a organização de eleições, mas sim a forma como essas instituições podem, ou tendem a evoluir, através da criatividade e da produtividade dos seus membros, do estabelecimento da democracia interna, criativa e obviamente crítica.

E como avalia o financiamento à investigação científica nas universidades angolanas, tanto públicas quanto privadas?

Não estou muito certo se já temos aprovada uma Lei de Financiamento à Investigação Científica para as universidades e instituições públicas de investigação científica em Angola. Como sabe, existe uma instituição pública conhecida como Centro Nacional de Investigação Científica (CNIC), que é uma herança da estrutura colonial: o então Instituto de Investigação Científica de Angola (IICA), em cuja estrutura, aliás, está hoje instalado. Trata-se hoje de um organismo abrangente, que engloba as principais áreas do conhecimento e que foi remodelado e pensado para agir em conformidade com a nossa política de investigação, dependendo por isso do Ministério do Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação (MESCTI). Ademais, que eu saiba, as instituições públicas em Angola para funcionarem minimamente, dependem dos seus orçamentos, pelo que, o desempenho dos investigadores e respectivas equipas têm dependido geralmente disso. Como sabe também, nas universidades públicas os professores e investigadores, estando reunidos à volta de um Conselho Científico-Pedagógico, vêm-se na obrigação de desenvolver estudos e pesquisas sobre as suas disciplinas de ensino, de modo a melhorar os seus desempenhos. Nestas instituições, foram criados, entretanto, alguns centros de investigação específicos. Tanto num quadro como noutro está-se dependente do orçamento de cada instituição principal. O que julgo saber também é que os orçamentos que têm sido disponibilizados para estas só cobrem um pouco mais do que verbas para o custeamento dos salários dos seus quadros e funcionários. Assim, ainda que precários, estudos e publicações colocados nos mercados para os múltiplos usuários, poderiam ajudar a perceber sobre o aproveitamento desses orçamentos.

Falta legislação?

Se nós temos hoje legislação que define o enquadramento e a trajectória do pessoal Investigador Científico, de um Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, instituições como o já citado CNIC, e a de um Fundo Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico, contudo, ao que julgo saber, não temos ainda legislação apropriada acerca do modo de financiamento à investigação. Países de língua portuguesa como Portugal ou o Brasil estão já dotados desse importante instrumento e nós temos observado que não só são estruturas que funcionam admiravelmente, mas também constituem importantes instrumentos de política, uma vez que contribuem para o desenvolvimento desses países em todas as áreas fundamentais. Quanto ao financiamento da investigação científica no seio das instituições de ensino privadas não tenho muita informação, mas o meu entendimento sobre o assunto vai direccionado para o que, em termos de produção escrita, estas oferecem ou disponibilizam à sociedade. Neste sentido, não obstante os problemas que têm sido encontrados nos últimos tempos em relação aos financiamentos, vejo, por exemplo, com muito bons olhos, as publicações que o Centro de Estudos e Investigação Científica (CEIC) da Universidade Católica de Angola (UCAN), tem pontualmente posto à disposição dos seus professores, estudantes e dos leitores em geral, que têm acorrido àquela instituição.

A Editorial Kilombelombe é uma editora privada que editou obras importantes sobre vários aspectos da nossa realidade (história, sociologia, antropologia, ciência política, tradição oral, literatura, etc., etc.). Porque sabemos que dirigiu a área da edição da mesma, gostaríamos de saber se essas obras serviram mesmo para enriquecer as nossas bibliotecas ou foram todas para o estrangeiro?

É sem dúvida uma boa pergunta. Não lhe poderei responder cabalmente acerca da mesma, mas tanto quanto sei, as principais obras que editamos são muito procuradas por pessoas interessadas, além dos leitores angolanos, geralmente professores e pesquisadores estrangeiros, que trabalham em Angola e sobre Angola. Não sei se representam as bibliotecas das instituições onde trabalham, mas em virtude da necessidade intrínseca ao seu trabalho, procuram os nossos livros. Os estudantes do ensino superior e médio têm procurado as nossas obras para se documentarem, já que, geralmente, não encontram nas bibliotecas onde estudam, o que é uma pena. Já relativamente às nossas bibliotecas, eu tenho mais ou menos algum conhecimento sobre o que desde sempre vem ocorrendo no nosso país. As nossas instituições não têm por hábito comprar livros, para o enriquecimento paulatino das suas colecções e o interesse dos seus leitores. Tanto a Biblioteca Nacional quanto a Biblioteca Histórica do Arquivo Nacional de Angola, ou mesmo a Biblioteca do Governo Provincial de Luanda (antiga Biblioteca da Câmara Municipal de Luanda), estas estão incluídas na asserção que fizemos antes. Mas o pior ocorre com a Biblioteca Nacional que deveria ter um orçamento que, em virtude das suas responsabilidades e funções, lhe fosse permitido comprar tudo o que no estrangeiro seja escrito sobre Angola. Amarrada que está ao orçamento do Ministério, infelizmente não lhe sobra verba para tal. Quanto às bibliotecas das instituições universitárias, tanto públicas quanto privadas, aqui as coisas parecem ser um pouquinho melhores, sobretudo nas bibliotecas universitárias privadas, mas, mesmo assim, nem tanto!

As bibliotecas das nossas universidades públicas possuem muito poucas obras recentes publicadas, por exemplo, no Brasil, Estados Unidos da América ou em alguns dos principais países da União Europeia (Grã-Bretanha, França, Espanha ou Portugal), ou mesmo aqui em alguns dos países nossos vizinhos, sobre a nossa realidade. É tão difícil assim perceber que o nosso acervo bibliográfico precisa de ser constantemente actualizado?

Tal como disse anteriormente, a questão se resume à inexistência de orçamento apropriado necessário para dar solução ao assunto. É verdade o que diz, muito dificilmente se encontra em Angola uma biblioteca pública que tenha os seus stocks actualizados. Muitas vezes, os livros mais recentes datam de há meses, senão mesmo anos. Não se trata aqui de saber se há ou não consciência ou percepção sobre a necessidade de actualizar constantemente o acervo das bibliotecas. O país, desde 11 de Novembro de 1975, que não atende a uma tal veleidade, tratando-se de algo que não entra no esquema de quem seja responsável pela solução do problema. Não poderei dizer que o passado foi melhor do que é actualmente. Uma das áreas por onde passei quando iniciei funções na área da Cultura foi a Biblioteca Nacional. Desde muito cedo verifiquei que esta vivia ainda de uma velha legislação portuguesa, que a levava a usufruir de tudo quanto era publicado em Portugal. Isso contribuía para aumentar o seu acervo e a mantê-la actualizada. Mas quando terminou essa legislação e paulatinamente deixamos de receber do velho “fundo bibliográfico luso”, não houve maneira de o substituir senão passar a fazê-lo através de aquisição; assim, desde o passado ao presente as nossas principais instituições culturais e de património deixaram de ter verbas necessárias para importar livros ou outros suportes de conhecimento e isso continuou a ser assim até hoje.
Há cada vez menos recursos…
Felizmente, a Biblioteca Nacional tem-se valido do muito pouco que tem sido produzido a nível nacional, graças ao que está estipulado para o Depósito Legal. Finalmente, não posso deixar de chamar a sua atenção para dois factos. Primeiro: todos os países que citou, sem excepção, são grandes centros de investigação e ensino, que incluem Angola. Em todos eles temos registos que nos garantem que cidadãos angolanos aí estudaram e concluíram formação superior. Ainda hoje há cidadãos angolanos matriculados no doutoramento nesses países, mas, geralmente, as nossas instituições de ensino superior não têm acordos nem estabelecem qualquer intercâmbio e cooperação com as instituições de ensino superior desses países. Em face dessa experiência, ou melhor, dessa prática, nesses países têm sido constantemente publicados trabalhos sobre Angola em múltiplos domínios do conhecimento: será que Angola tem beneficiado desses saberes?… Segundo: no decorrer do mês passado você publicou a entrevista que lhe foi concedida por Linda Marinda Heywood e John Thornton, dois grandes docentes e pesquisadores norte-americanos, meus amigos, que há mais de quatro décadas trabalham sobre África e especialmente sobre Angola. Durante esse período ambos foram trabalhando e publicando livros que constituem avanços visíveis sobre o conhecimento da nossa história e cultura. Veja na nossa Biblioteca Nacional quantos livros destes dois autores ela alberga no seu espólio…


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